Você está na seção: Respondendo a perguntas o autor, aos 77 anos... Voltar para Home
Respondendo a perguntas o autor, aos 77 anos, faz um balanço de sua carreira
 

Caro João Carlos Marinho,

Agradeço pela disposição em me atender e pela gentileza que demonstra com seus leitores e pesquisadores de sua obra. 
Como estudo sua obra na minha pesquisa de mestrado, acabei incluindo mais questões sobre sua obra completa para jovens. 
Coloco-me à disposição para maiores esclarecimentos.

Atenciosamente;
Ana Suellen Martins

1. Como, quando e por que a senhor começou a escrever?
Com a intenção e a determinação de publicar literatura,eu comecei em setembro de 1965 os primeiros esboços do Gênio do Crime. Desde os seis anos eu escrevia historinhas, como é comum, para a família, para a classe, para os amigos. Nesse tempo os meus leitores prediletos eram o meu pai e o Artur Neves, que trabalhava na Cia. Editora Nacional e virou editor na Brasiliense (tanto numa editora como na outra era ele quem se ocupava de Monteiro Lobato). Numa dessas historinhas ele deixou enfaticamente escritas as impressões dele e o futuro que me aguardava, mas o elogio é tão exagerado e feito de uma maneira tão bombástica que empalidece a espontaneidade, nem eu acreditei, é a típica “mamãezada” para o filho do amigo. Eu me lembro muito bem que lamentei aquilo, ele podia ter sido mais espontâneo, como ele era no quotidiano. Mas o interesse dele por mim e a minha afinidade com ele eram muito reais. Quando morei na Suiça escrevi duas peças, ou farsas, de teatro, curtas, de um só ato, para a representação que a escola sempre fazia no Natal e convidava os parentes. Posso dizer que foi aí que eu tive o “carimbo” de que eu era capaz de levar uma plateia ao delírio, que foi real, eu prestei muita atenção na cara e na linguagem corporal dos espectadores (o pessoal de teatro geralmente faz isso, é um excelente termômetro). E tive a sorte de ter aulas de literatura francesa com um extraordinário professor, Monsieur Aloys de Marignac, que me fez devorá-la com paixão, especialmente na parte dos renascentistas e do século de Luis XIV, Rabelais, Montaigne, Ronsard, Villon, Du Bellay, Racine, Corneille, Moliére, La Fontaine, Boileau, Saint Simon, Desde que entrei na faculdade e até começar a escrever o Gênio do Crime, não tentei literatura, mas colaborava sempre em jornais acadêmicos, tendo sido editor do Jornal Semanal (ou quinzenal) do XI de Agosto e editor do Jornal da União Estadual dos Estudantes. E ainda fora da literatura como advogado, nunca parei de escrever diariamente que é a rotina da profissão. Quanto a dizer porque eu comecei a escrever, quando eu era mais moço eu titubeava um pouco em achar a resposta mas agora, olhando retrospectivamente, me parece evidente que foi uma vocação que se impôs, esse destino estava em mim. Eu gosto muito do ditado francês “Ne chassez pas la nature, elle revient par la fenêtre”. Eu tinha “expulsé la nature” porque uma carreira liberal é uma maneira muito mais palpável e previsível de você se organizar para ganhar a vida. Não poderia, nesta pergunta sobre influências no surgimento da vocação, esquecer o meu querido avô, João Marinho de Azevedo que, com a morte de meu pai quando eu tinha 13 anos, assumiu o comando de minha educação, que em parte já havia assumido a partir dos 10 anos quando eu vim para São Paulo estudar no Mackenzie. Ele foi um grande educador, os seus alunos da Faculdade de Medicina (todos falecidos) jamais esqueceram as suas aulas e foi um grande humanista, tinha uma biblioteca de mais de 20 mil exemplares, o que será fácil perceber lendo a incomum carta que ele me mandou em outubro de 1952, um mês depois de eu ter feito 17 anos. Coloquei faz alguns dias essa carta na minha página do Facebook, mas você poderá tê-la no seu arquivo clicando aqui.

2.  O senhor acredita que alguns autores e obras tenham exercido influência marcante na sua produção? Que autores e obras? Que tipo de influências?
A leitura constante dos grandes gênios me fez ir penetrando cada vez mais no mundo particular da literatura. Isso foi indispensável para a minha formação de escritor. Mas é muito diferente contribuir, entre outras coisas, para a formação de um estado de espírito, do que algum autor atuar como motor determinante e específico para a minha obra. O jeito que eu sou, o percurso da minha vida, com a sua multidão de experiências, entre elas as leituras, é que vai formar a minha vida interior. Quando eu escrevo eu não penso em autor nenhum, não me sinto discípulo de nenhum autor particular, o meu guia é a minha vida interior. Por exemplo, se eu pego o Frère Jean do Rabelais, é que esse personagem me foi útil naquele momento, não tem nenhuma diferença de quando eu pego o Hélio, mordomo do meu cunhado Plinio de Ribeirão Preto, e transformo ele no Abreu, que como o frade João, vão percorrer a minha obra. O Hélio não está em autor nenhum mas certas particularidades dele entraram na minha vida interior e quando eu precisei de um mordomo o meu pensamento foi lá. Quando eu digo que eu fiquei deslumbrado pelos diálogos do Molière, é que, no fim da minha adolescência foi o primeiro genial dialogador que encontrei, me abriu a porta para a observação do diálogo. Depois eu vim a ter intimidade com o Proust e o Guimarães Rosa que são superiores ao Molière na elaboração dos diálogos de seus personagens, eu sinto os personagens deles falando como se estivessem na minha frente. Aquilo vai para a minha vida interior e lá se mistura a milhares de outras coisas. Quando eu digo que ao escrever os capítulos curtos do Caneco de Prata eu me senti tranquilo ao ver que o Oswald de Andrade fez igual no Memórias Sentimentais de João Miramar, isso nem é inspiração, isso é uma coisa mecânica, igual eu me senti tranquilo ao nunca dar títulos aos meus capítulos ao ver que muitos escritores faziam igual. Muito mais importante, na disposição estética dos mini-capítulos do Caneco foi a pintora Vera Ilce, que me resolveu genialmente o quebra-cabeças, determinando que se jogassem os capítulos na base da página, se deixasse um grande espaço grande em cima e se colocassem números grandes bem em cima para equilibrar. Essa sim, eu devo diretamente à Vera Ilce, aquela linda paginação não existe em autor nenhum. Então a resposta à sua pergunta é: não sou tributário de nenhum autor específico e sim da literatura. 
Dentro desse ângulo eu posso fazer dois destaques: Em primeiro lugar a Monteiro Lobato que foi o primeiro autor que eu li, na infância, com paixão e que me abriu a porta para a literatura e para eu ser escritor pois me deu a chave de tudo que eu iria fazer depois. Me lembro que eu devia ter nove anos e, após ter lido e relido Lobato eu pensei assim (lembro perfeitamente) : “eu já li tanta coisa porque será que só esse Lobato me emocionou tanto?” E achei imediatamente a resposta: Porque ele deu vida aos livros dele. Não se contentou em fazer livros apenas bem feitos e inteligentes. Essa chave de entrada ficou para sempre. E, sobre as leituras posteriores à infância, seria cansativa a lista dos que eu percorri e gostei muito, mas hoje aos 77 anos é fácil eu destacar os quatro livros que eu gostei mais que todos, pela incomum frequência que a eles eu volto e leio de novo (todos disparando acima de dez releituras) que são (os títulos vão na língua que os leio) :
Les Essais : Michel de Montaigne
Guerra e Paz: Leon Tolstoi
A la Recherche du Temps Perdu: Marcel Proust
Grande Sertão Veredas: João Guimarães Rosa

3. O senhor poderia comentar o seu processo de criação literária?
Uma coisa eu senti de maneira palpável desde o começo: aquela frase de que numa obra tem que ter 99% de transpiração e 1% de inspiração, isso é totalmente falso. Qualquer trabalho nesta vida precisa de concentração, suor, perseverança, sacrifício, doação de si. Isso é o que os franceses chamam de "une vérité à la Palisse" Milhões de autores se mataram de trabalhar e acabaram fazendo livros medíocres. A única porta para a obra de arte é a inspiração. Ela é 100% da obra de arte, o resto é comer, dormir, beber e trabalhar,ou seja, o resto é o óbvio. Para mim é uma felicidade quando acho a inspiração, e é um mistério do jeito que ela chega, não há fórmula para isso (do contrário existiriam faculdades de escritores, diplomas de escritores), em alguns livros, como acontece com todos os bons escritores, eu sou mais inspirado, em outros menos. Eu não vou atrás da inspiração, deixo que ela aconteça normalmente, de onde você vê que eu escrevi poucos livros, e relativamente curtos (110 pgs., por aí). Mas não é uma norma geral. Escritores muito mais importantes do que eu, como Molière e Shakespeare eram obrigados a uma produção continua de peças de teatro, e para eles era fundamental desenvolverem um certo sistema de achar inspirações. Que foram maravilhosas. O que eu pude observar é que certas ideias (como o álbum de figurinhas, a transfusão de sangue) levam a um livro bom, e outras ideias não. É o que o Monteiro Lobato, em carta a Godofredo Rangel, chama de “sementes mágicas”. É uma relação, evidentemente muito pessoal, que a ideia inicial tem com o autor, porque a semente mágica, como descreve o Lobato, entra lá dentro e cria raízes, quando a gente acorda no dia seguinte essas raízes já estão começando a entrar em todas as partes do cérebro e da sensibilidade, como se fosse uma poderosíssima célula cancerosa. Entra na circulação, toma conta da gente. Outras ideias que aparentemente são esplendidas, riquíssimas, chegam a nos seduzir, e até entusiasmar inicialmente, mas não conseguem se implantar, não se espalham. Deixa indiferentes os automatismos da nossa vida interior e não a contaminam.

4. Onde o senhor encontra estímulos ou pretextos para escrever?
Creio que isto está respondido na pergunta anterior.

5. Que relação o senhor mantém com a linguagem, o estilo?
Para mim, escrever literatura (aqui estou falando especificamente de escrever e não da inspiração da obra, da qual já falei acima) foi fundamental ter lido muito, e ler muito, os grandes autores que eu gosto e mesmo os que não me impressionaram tanto mas são considerados pela boa crítica como fundamentais (por exemplo o Ulysses do Joyce, tive um trabalho enorme lendo aquilo, gravando tudo, ouvindo e ouvindo de novo, até entender os mínimos detalhes, foram dezenas, com certeza mais de cem horas de trabalho e não voltei depois, mas não podia deixar de “entrar naquilo”). Isso me deu uma referência e mais que tudo um exercício muito grande, indispensável. Observar também o jeito que os outros falam. Nesse ponto o fato de eu ter sido advogado trabalhista, eu adorava ouvir a ritmo e a colocação fraseológica daqueles analfabetos ou semi-letrados que vinham do interior, ou de outros Estados, de Minas sobretudo onde eu descobri maravilhado que o Guimarães Rosa foi o único a realmente penetrar nesse ritmo, nessa “construção mental” do idioma brasileiro, toda a literatura dele pegou o sistema dessa estrutura brasileira de falar, de falar “pensando em voz alta”, indo, voltando, parando. Outros autores souberam, nos diálogos, reproduzir, de ouvido, o diálogo do brasileiro, mas ficavam nisso, só o Guimarães entrou lá dentro, desvendou a estrutura e o sistema e o incorporou inclusive à sua maneira de pensar e de escrever. Eu preenchi vários cadernos com a fala de meu clientes: era Guimarães Rosa! Isso até os anos 70 ou 70 e pouco, quando a televisão não tinha ido para o interior e as novelas ainda não faziam parte do quotidiano do povo. A partir daí houve uma padronização desta linguagem do povo. Mas a minha maneira básica de escrever é a linguagem materna, o delicioso português brasileiro que se falava em casa. Qualquer pessoa que tenha o costume de conversar comigo percebe logo que eu sou o autor dos meus textos literários. Eu ponho nos livros o mesmo “balanço” que eu tenho falando e pensando. Houve influências durante a vida, mas sempre filtradas por esse núcleo. Quando eu estou escrevendo um texto explicativo, não literário, ou como advogado, ou como esse que eu estou escrevendo para você agora, esse núcleo de linguagem materna se faz menos sentir, mas na literatura é total. Como quando eu converso. A linguagem materna é uma coisa muito forte. Por exemplo, eu não consigo dizer: dois gramas. Seria uma violência, iria doer, fazer mal, não pela gramática, mas “duas gramas” está no meu modo de formação da linguagem, não dá para mudar, igual meio-dia-e-meio. Eu não iria por num livro, porque iria desviar a atenção do leitor da história para uma irrelevante perplexidade gramatical. Então escrevo meio dia e vinte. Mas meio dia e meia jamais escreverei. Nem direi. É horrível. Dói na cabeça. Uma violência. Como observou Monteiro Lobato a gente usa muito pouco os pronomes oblíquos da terceira pessoa: eu lhe disse, eu o vi, em vez disso a gente fala “eu disse a ele”, “eu vi ele”, mas o te eu misturo muito com você, como se fazia em casa e como se faz em São Paulo e no Rio. A gente não chama ninguém de tu, mas o te se usa muito. Eu te amo. Eu te disse. Mesmo que na sequência da mesma frase a gente passe a usar o você de novo. É um ritmo delicioso que se aprende no berço e que forma uma estrutura dentro da gente: é a própria estrutura da gente. Você vê que o Gênio do Crime está lá há 43 anos, nada foi mudado, e as crianças de todo o Brasil entendem imediatamente a minha linguagem. Que é a mesma que eu uso quando falo com eles. Ou com qualquer pessoa. A mesma que eu uso para pensar ou quando eu digo alguma coisa sozinho. Isto leva à conclusão obrigatória (explicarei mais adiante na outra pergunta) que eu nunca colocarei uma palavra, mesmo que seja atual, apenas pensando no leitor. A palavra tem que passar pelo metabolismo do meu cérebro e ter sido aprovada. A não ser quando eu quero fazer a caricatura depreciativa do falar de alguém, mas mesmo assim acho que foi muito raro (O Abreu pontuando as frases com o “veja bem”ou o Abreu usando o pendular pedante do “não apenas... mas também”). Mas geralmente quando eu faço alguém falar eu faço com palavras e jeito que eu gosto, como é o caso do Redimir, cozinheiro baiano do acampamento dos bandidos.

6. Por que escrever literatura juvenil?
Eu não escrevo literatura juvenil, escrevo literatura infantil, que são coisas completamente diferentes no meu modo de ver (ver minha resposta à pergunta número sete). E escrevo literatura infantil pelo mesmo motivo que o Monteiro Lobato. Eu funcionei maravilhosamente bem ali. Achei a minha vocação ali. “Onde a gente funciona e onde a gente não funciona.” isso é uma coisa importantíssima na vida. Sempre digo para as crianças e é uma colocação que elas entendem com facilidade. Aos dez anos (que é a idade básica de meus leitores) as crianças já puderam perceber em que campos elas funcionam bem e em que outros elas são um desastre. Esse determinismo biológico vai determinar a escolha das profissões delas. Como exemplarmente está claro há mais de um século, a divisão dos últimos anos do ensino secundário em exatas e humanas que antes eram clássico e cientifico. Puro determinismo biológico que a prática do ensino teve que reconhecer.

7. O senhor acredita numa especificidade da literatura juvenil? É muito diferente escrever para crianças, jovens ou adultos? Por quê?
Geralmente os escritores infantis e os tratadistas têm imensa dificuldade, ou pudor, de reconhecer que a literatura infantil é uma literatura menor, se comparada com a literatura em geral. Mas evidentemente que é. Vamos dizer assim: é uma linda arte menor, uma adorável arte menor, uma maravilhosa arte menor, mas é uma arte menor. A literatura infantil é uma literatura simplificada para poder ser lida por crianças. Você tem que tirar dela a experiência da vida. Você tem que simplificar as abstrações intelectuais de que lança mão. Os personagens devem ser obrigatoriamente estereotipados, com mais arte ou menos arte conforme o escritor. Acontece que Monteiro Lobato tinha um legítimo orgulho de ser um grande escritor infantil, eu também. Por ser uma arte simplificada isso não quer absolutamente dizer que ela seja fácil, precisa de muito talento para se entrar lá dentro, precisa ter tido uma infância muito rica (a infância é uma viagem extraordinária) que te deixou gravadas uma porção de sensações que irão ser a matéria prima de seus livros. É uma arte riquíssima. Mas a minha opinião pessoal é que não pode ser colocada em pé de igualdade com a Grande Literatura, que vai penetrar no destino da gente, sem limites, sem restrições. Falei da literatura infantil, que se dirige para crianças até o começo da adolescência. Os meus livros, a meu pedido e segundo a experiência que tive, se destinam a crianças entre 8 e 12 anos. Não me interessa fazer teorias biológicas ou sociológicas, eu me guio apenas pela minha experiência pessoal quando passei da infância para a adolescência e pela experiência pessoal que eu tenho através da resposta dos leitores do Brasil durante 43 anos. Dos 13 anos em diante os leitores não captam os meus textos com a mesma sensibilidade e o mesmo gosto instintivo. Eles se dispersam, fazem raciocínios esdrúxulos, enfim “não penetram no negócio”. A não ser uma minoria que é irrelevante do ponto de vista estatístico. Esse é o fato. A razão, acredito, é que a metamorfose violenta do organismo na adolescência já é um rompimento radical com a infância. A adolescência é o começo da vida adulta, a infância já terminou. Eu me lembro perfeitamente que isso aconteceu comigo. E aconteceu com a multidão de leitores que eu encontrei. Não é uma conclusão científica, não estudei a matéria, eu só digo que não me interesso por literatura para adolescentes (juvenil) por causa disso. Eu só recebo no auditório de meu prédio (pois não vou em escolas) até o sexto ano. Dali para a frente se a professora realmente quiser vir deve escolher seis alunos que serão atendidos, junto com ela, na sala de estar de meu apartamento, que poderão filmar, gravar, mas grupo de pré-adolescentes eu não recebo porque a prática mostrou que não se estabelece afinidade entre os meus livros e eles. No que diz respeito à Grande Literatura, pelo que eu já disse, é evidente que eu quis entrar nela e publiquei três livros: O Professor Albuquerque e a Vida Eterna, Pedro Soldador e o livro de poemas Anjo de Camisola. Nenhum deles passou da primeira edição que ficou encalhada, com toda razão, pois eu reconheço que não consegui fazer bons livros, são falhos dramaticamente, não têm vida. Mas não os renego, para mim foram experiências muito válidas. Me serviram muito. E no ano passado eu lancei o meu livro de contos Dueto dos Gatos (e outros duetos), que me deixou feliz. Ainda não tive uma repercussão consistente, mas tenho certeza de que consegui o que eu tanto queria. Entrar nesse mundo também. Não tenho pretensão de ser “cacique” ou “tutumumbuca” aqui, como sou na literatura infantil, mas tenho a convicção de que o Dueto dos Gatos é boa literatura.

8. Em que medida o senhor acredita que o mercado afete a sua produção literária? No caso da literatura para jovens, essa influência assume características diferenciadas? Por quê?
Eu encontrei no Alceu Amoroso Lima a resposta perfeita para o meu relacionamento com o mercado. Diz ele que nenhum grande escritor ignora o público, quando uma pessoa publica está se dirigindo ao público. Mas de outro lado nenhum bom escritor se apaga diante do público. O escritor escreve para um público que tem afinidades com ele. Eu escrevo para um publico que tem afinidades comigo e com o João Carlos de dez anos (que é o meu público alvo). Surpreendentemente são muitas crianças, mas não é todo mundo. Eu não escrevo para “todo mundo”, escrevo para “esses caras lá”. Isso me dispensa de prestar atenção no mercado.

9. Nas primeiras histórias, em algumas das edições da Turma do Gordo, há a presença de fichas de leitura. O que acha de algumas edições terem essas fichas e outras não? Como o senhor analisa essas fichas em livros para jovens? 
Quando eu tive conhecimento de que em outros livros havia ficha de leitura a minha primeira reação foi de repugnância. Vi aquilo como uma estereotipação do livro. Mas depois de algum tempo o meu editor de então, o Luiz Fanelli, me pediu licença para colocar uma ficha de leitura porque os tempos estavam mudando, estava crescendo uma certa faixa de professores que tinham dificuldade de dar uma aula sobre literatura infantil, e eles professores, imploravam por uma ficha de leitura para ajudá-los a preencher esta deficiência pessoal. Em vista disto eu mesmo fiz uma ficha de leitura para o Gênio do Crime e se me lembro bem pedi a uma professora muito competente que fizesse para o Sangue Fresco. Mas eu não gosto. Faz muito tempo que os meus livros não têm ficha de leitura e se tiverem, pelo que eu saiba, seriam aquelas que autorizei, pois a editora precisa pedir a minha autorização para introduzi-la.

10. Houve várias mudanças nas edições de Sangue Fresco, tanto na capa e 4ª capa, nas ilustrações e, inclusive, um prefácio feito pela Fanny Abramovich na primeira edição, que não consta nas demais. Você participou dessas alterações? Chegou a sugerir algum detalhe para a obra nas outras edições?
Todas as alterações que houve foram autorizadas por mim, mesmo essas de ilustração precisam ser autorizadas por mim, pelos contratos que assinei. Todos, menos a primeira edição do Gênio do Crime. Acontece que esse fantástico ilustrador da primeira capa do Sangue Fresco morreu e, como eu passei para outra editora, a Global, onde estou há 27 anos, as editoras não costumam pegar as ilustrações da outra editora porque isso complica direitos autorais e essa coisa toda. Ainda mais ilustração de uma pessoa que morreu, a família pode entrar no meio e fazer exigências. Porque pelo contrato, e pela lógica, ao passo que o texto é coisa intima minha e ninguém pode mexer, as ilustrações devem ser aprovadas por mim e pela editora e as editoras gostam de trabalhar com ilustradores que elas conhecem. Os dois devem aprovar. Não impede que um ilustrador que trabalhou em uma editora não possa trabalhar na outra,como aconteceu com o Roberto Barbosa. Sobre o prefácio da Fanny, eu pedi a ela para fazer pois, como você observa mais adiante, eu fiquei mais de dez anos sem publicar livros infantis e a Fanny, alem de ser minha amiga pessoal, ela estava sempre muito presente com artigos nos jornais sobre livros infantis. Era ainda o tempo em que os jornais não haviam morrido de todo (porque agora são mortos vivos) e havia ainda aquela tradição de critica literária que corria nos jornais. Esse prefácio só tinha razão de ser para anunciar a “minha volta”, na primeira edição, logo depois não precisava mais porque o Sangue Fresco “pegou fogo” violentamente.

11. O senhor é um grande leitor e admirador de Monteiro Lobato. Este, ao reeditar suas obras, acrescentava capítulos ou alterava os seus títulos. Houve alguma alteração em suas obras em relação ao conteúdo? 
Antigamente todo escritor não resistia à tentação de ajustar um pouquinho o livro dele a cada edição porque no tempo da tipografia, com os chumbinhos, a cada edição tudo precisa ser feito de novo, o escritor (se estivesse vivo) ia fazer de novo a revisão, e quem é que resiste? Porém, mais ou menos a partir da segunda edição do Caneco de Prata (1973?) a impressão eletrônica começou a entrar em cena e os livros eram filmados e reimpressos sobre o filme. Com os computadores não sei o sistema exatamente, mas as editora guarda uma matriz. Acabou-se aquela rotina pessoal da reimpressão, ela é automática. Então, com as duas maneiras, se o escritor quiser mudar uma coisinha isso vai dar um enorme trabalho. Acabou-se aquele “convite” de mexer no livro. Quando há quatro ou cinco anos a Global resolveu aumentar a altura do livro (que ficou mais bonito) foi preciso fazer tudo de novo, e todas as provas passaram pela minha mão, com liberdade evidente de mexer onde eu queria. Mas eu mexi muito pouco, uma coisinha ou outra muito irrelevantes, pode-se dizer que todos continuaram exatamente os mesmos. Menos no Caneco, esse aí já sofreu três grandes alterações. Primeiro, e principalmente, porque a primeira edição saiu pouco infantil, as crianças, mesmo as que têm inclinação a gostarem do Caneco, ficavam perdidas. Então eu retirei alguns capítulos para que a parte que dá continuidade ao livro, que é o campeonato de futebol, ficasse mais evidente. E as outras duas alterações foram porque a estrutura do Caneco, com capítulos que muitas vezes não tem muita relação entre si, permite essas mudanças, quando houver uma outra oportunidade capaz de eu mexer de novo. Aliás, essa última mudança eu resolvi caprichar, convidei uma pintora ilustrar e supervisionar a paginação, gostei do que ela fez.

12. Seus livros são bem estudados na academia devido à qualidade literária e repercussão com o público leitor. O senhor disse que os trabalhos universitários ao classificar a sua obra como “suspense”, limita-a. Isso o incomoda? Como o senhor analisa essa classificação da sua obra?
É normal que os trabalhos universitários, que precisam lidar com um grande número de livros, procurem certos padrões para facilitar a coisa. Sempre foi assim. De uns anos para cá entrou na moda (e isso eu vi claramente nos trabalhos exigidos das crianças que me visitam) o chamado padrão de “narrativa enigma”. Os professores gostaram porque é um estimulo para eles darem enigmas para os alunos. Acontece que para mim a estrutura da aventura é apenas o esqueleto, a ossatura, sobre a qual eu faço viver o livro, eu vou lá e dou vida ao livro. Com humor, com alegria, com relacionamentos curiosos entre as pessoas. Isso que é a literatura. Fiquei até rouco de tanto repetir isso. Eu falo assim: olha eu não posso escrever um livro sobre a vida diária e o relacionamento de umas crianças entre si e com os outros, sem que eu coloque uma estrutura dramática que faça eles se movimentarem. Tenho que botar um bandido, um enigma que seja, que os desafie, que os faça se moverem, trocarem de lugar. Do contrário ia ficar um olhando pro outro e conversando e contando piada, e almoçando, e jantando e dormindo. Então eu pego o desgraçado desse enigma ou dessa aventura, que é o secundário, para que ele movimente o principal, que é a vida do livro. Isso que eu falo. Porque me incomoda ver o meu livro transformado num quebra cabeça. Me incomoda em parte, porque eu sinto claramente que as crianças se divertem e se apaixonam pela vida do livro, e nesse ponto eu continuo a me sentir realizado. O enigma não ia segurar nenhum leitor por 43 anos. Nem esses pais e essas mães que nunca esquecem e que me escrevem. A originalidade da minha literatura e do meu humor, da vida que eu ponho, é que os encanta. No fundo acho normal que na hora de “interpretar” haja coisas esquemáticas. A vida é assim. A minha filha encontrou em um ônibus, faz alguns anos, uma criança que deu um exemplo do que é a reação de meus leitores ao lerem os meus livros. Ela estava no fundo do ônibus, o ônibus estava lotado e ela estava de pé. De repente uma enorme e aguda gargalhada ecoou pela ônibus. Era uma gargalhada de criança que vinha lá da frente do ônibus. Minha filha andou até lá e viu que tinha uma criança sentada, lendo o Gênio do Crime e rindo sem parar. Ela falou para a criança: Olha, esse livro que você está lendo foi o meu pai que escreveu. :A criança virou pra ela e falou: Eu estou lendo pela décima vez. Então, digo eu, se ela estivesse atrás do enigma, já estaria cansada de saber.

13. Como seus leitores reagem à violência presente em suas obras? Eles costumam comentar sobre elas? Se sim, quais tipos de leitores?
À medida que o tempo foi passando e que aquela época tão calma em que foi publicado o Gênio do Crime foi dando lugar à um tempo de mais e mais violência, era normal que, em uma literatura tão vigiada como a literatura infantil, surgissem pessoas que estranhassem a violência ingênua que existe nos meus livros. Não havia como evitar, era esperado, previsível. Vão continuar a surgir estes protestos. Mas o principal é que eles não atrapalham, as crianças continuam lendo, as professoras continuam dando em classe, os pais continuam adorando porque o fato evidente de que estas violências são colocadas com arte, dentro de histórias alegres e humorísticas, cheias de vida, esse fato tem uma autoridade enorme e sempre prevalece. O que acontece com algumas mães, ou professores (poucos) que protestam é o que acontece por exemplo com um ou outro jornalista a quem dão a missão de dar uma olhada rápida nos meus livros para fazerem uma resenha ou darem um palpite. O jornalista quando está assim meio no ar, ele precisa pegar num motivo pra desenvolver : na rapidez da leitura, a experiência profissional dele vai procurar um motivo fácil para chamar a atenção e conduzir o artiguinho dele: então ele fatalmente vai, por exemplo, cair logo de cara numa sucuri comendo um menino. Pronto, está feita a matéria dele. Mas quem prevalece é a realidade: a sucuri é adorável, os pais,as mães, as crianças, acho que você também, todo mundo ama aquela sucuri. A minha Fedra: “de l’amour j’ai toutes les fureurs”.

14. O senhor aborda no universo da literatura infantil formas de violência realmente vivenciadas como a tortura, em O Gênio do crime, e o uso de Napalm, em Sangue Fresco, entre outras. Como se dá essa relação do contexto histórico (regimes autoritários, guerras) com a produção da narrativa para crianças?
Eu busco fatos que vão funcionar dentro do meu livro, só. De onde eles vem não importa. A verossimilhança é fundamental nas minhas histórias. O gordo é orgulhoso, detesta ordens, o bandido manda ele falar e ele não fala. Desafia o bandido. A única solução que um bandido pode pensar nesse instante é arrancar uma unha. É evidente. Jamais eu pensaria em regime político nessa hora, nem em mandar uma mensagem, eu penso no que está acontecendo. Com napalm mesma coisa, os aviões dos bandidos não tinham bombas guiadas por lazer, que só foram aparecer na Guerra do Golfo em 1991, para atingirem exclusivamente a turma, precisavam de uma bomba que espalhasse o seu efeito mortífero por uma larga área, matasse tudo, e essa arma era o napalm. Eu me preocupo só com a minha história e com o que pode funcionar bem nela.

15. Já surgiu a oferta de fazerem um filme sobre Sangue Fresco, visto que é uma obra cheia de aventuras? Ou de qualquer outro livro, além de O Gênio do crime?
Não.

16. Depois de 11 anos, após o lançamento de O caneco de prata (1971), é publicado Sangue Fresco (1982). Comparando o ano de publicação de todos os seus livros, este é o que teve um intervalo maior de tempo entre uma obra e outra. Você já tinha em mente a continuidade da turma do gordo, após O caneco de prata? Ou Sangue Fresco foi a obra que mais lhe exigiu tempo para conclusão? 
O que exigiu mais tempo foi o Genio do Crime. Mas Sangue Fresco deu muito trabalho, como você pode ler no meu texto COMO ESCREVI PASSO A PASSO SANGUE FRESCO que está na seção Noticias do meu site. Houve o intervalo porque eu me ocupei em escrever O Professor Albuquerque e a Vida Eterna, Pedro Soldador (que foram publicados) e cheguei a completar uma tradução de Rabelais para o português arcaico, que me deu muito trabalho mas que é inviável publicar porque eu me apaixonei pelo português arcaico e fiz uma tradução muito mais arcaica que o francês do Rabelais, só inteligível por especialistas e portanto sem viabilidade de publicação. Mas adorei e pude ter mais intimidade com o Frade João, que é um personagem muito querido desde a adolescência na Suiça.

 

17. Sangue Fresco foi uma das obras que foram compradas, em 2006, pelo Ministério da Educação para ser distribuída nas escolas públicas do país pelo Plano Nacional da Biblioteca da Escola. Como você analisa a escolha dessa obra e não a de qualquer outra da turma do gordo? Qual característica você destacaria da obra para que fossem distribuídas nas escolas?
Pelo meu contrato a editora está livre de, sem me consultar, de fazer e vender edições especiais pelo preço que lhe convém. Sempre foi assim. Sempre houve estas edições especiais, em maior ou menor número, para São Paulo ou outros estados. É um fato corriqueiro. Não é assunto que desperte o meu interesse, eu fico sabendo quando recebo os relatórios semestrais das vendas feitas. O meu contato com o meu editor é o de dois grandes amigos, ele é absolutamente correto nunca atrasou um pagamento, nem de um dia, se eu estivesse interessado em esclarecimentos ele me daria todos. Fico contente ao verificar que um livro está com ótima saída, muito. Acaba chegando nas minhas mãos, muito bem explicado, duas vezes por ano. Sobre a parte da pergunta que versa sobre os motivos da preferência escolar, também não me interesso em saber. Eu já sei, pela experiência, quais os livros que vendem mais e a minha vivência de escritor infantil me mostrou imediatamente, desde o começo, que o meu papel não é o de educador, é de escritor, é de artista, e que não tem propósito eu ficar esquadrinhando os programas escolares, suas motivações, nem ir em escolas, nem ficar dando conselho pedagógico para ninguém. As escolas me procuram na minha casa porque acham que a boa literatura é importante. E eu procuro fazer boa literatura.

18. O senhor sabe quantos exemplares teriam sido, até hoje, vendidos de Sangue Fresco, incluindo vendas governamentais? O total geral e o total específico de vendas para o governo? 
Se eu quisesse era só somar o número vendido de livros cada semestre que eu obteria um total geral. Mas nunca somo. Olho só como está o panorama. Muitos escritores fazem a contagem, eu acho legítimo, o Lobato fazia, é o jeito que eu sou, eu fico feliz de ver que a coisa está andando bem. Acho que o Sangue Fresco está na 31ª edição, mas não tenho aqui porque meus netos e sobrinhos rapam tudo, não perdoam. Só que a contagem das edições agora é diferente. O Sangue Fresco está na 6ª reedição da 25ª edição, o que resulta na 31ª. Antigamente cada reedição era uma edição, isso pode causar uma certa perplexidade, sobretudo se for para uma 26ª edição, talvez se perca a conta por completo, pois talvez não constem as reedições da 25ª. Não sei.

19. Qual o seu livro mais vendido? Quais outras obras vendem mais? Quais as tiragens?
Essa eu vejo com facilidade nos relatórios. O Gênio do Crime está sempre na frente, disparado. Depois vem o Sangue Fresco, também com destaque evidente sobre os outros. Depois pela ordem: Conde Futreson, Assassinato na Literatura Infantil e Berenice Detetive. No terceiro grupo estão os outros, que vendem continuamente, continuam ativos no mercado, todos, mas vendem menos. As tiragens vêm sempre indicadas nos relatórios mas eu não presto atenção.

20. Para o senhor, qual o papel da literatura hoje?
Há quatro ou cinco anos, na França, foi dado um tema de dissertação de Baccalauréat que me chamou a atenção: Por que a beleza é absolutamente fundamental para a vida humana? Esse tema responde à sua pergunta.

21. É provável que esta entrevista venha a ser lida por especialistas em literatura infanto-juvenil, professores e mesmo alunos de Ensino Fundamental e Médio. Há algo em especial que o senhor gostaria de dizer a esses leitores? Gostaria de dar algum depoimento sobre qualquer outro tópico não contemplado pelas questões anteriores?
Acho que as suas perguntas colocaram os pontos fundamentais. E feliz aniversário. Se eu esqueci alguma coisa me avise.

João Carlos Marinho

TOPO