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DR. J.M. DE AZEVEDO
 

Rua Vitorino Carmilo, 620 - São Paulo – Brasil

 

 

São Paulo, 17 de outubro de 1952

Meu querido João Carlos:        

Não imagina a satisfação que me deu a sua longa carta de quatro folhas, pelas quais vejo a sua acomodação já bem adiantada aí na Suiça. A começar pelo francês que verifico bem desenvolvido. Você agora há de rir-se comigo quando nos recordamos daquele seu sistema de querer pronunciá-lo do modo extravagante que sabemos. Firme-se no inglês sem desânimos para quando chegar o tempo de ir a Londres aproveitar desde logo a sua permanência lá. Não pensemos por enquanto em apressar essa finalidade. Demos tempo ao tempo, que não perdoa o quê se faz sem pausa. Continue juntamente com o italiano, mais importante que o espanhol, não só por ser língua sábia mais universal, como pela harmonia de sua dição e magnífica literatura a começar por Dante e Petrarca, iniciadores do Renascimento na Europa: Dante nasceu no século XIII, Petrarca logo no começo do seguinte, em 1.304. Ainda é muito cedo para v. poder apreciá-los, o que não é dizer que desde já não vá incorporando “Il gentile idioma”, para depois saboreá-los no original. Quanto ás ciências, não são menos mestres. Apropriam-se logo das últimas novidades, que transportadas para a língua italiana, propaga-se pelo mundo latino com a clareza característica das línguas neo-latinas, em que excelem o francês e o italiano, mais que o português e o espanhol.  Assim para as aplicações práticas nos ofícios do engenheiro, do médico, do advogado, para só ficarmos nesses três. Francês, inglês e italiano são a base da internacionalidade. O espanhol é tão semelhante ao português que v. depois o adquirirá com toda facilidade. Logo ficará poliglota em cinco idiomas. Deixe, pois, por enquanto, o espanhol. Mas não a lição de alemão, uma vez por semana. Irá assim tomando um cheiro dessa língua. Depois das últimas guerras, os vencedores a desdenham. Contudo, o futuro, quero dizer os homens que virão da adolescência atual lastimarão o não haverem chamado a atenção para uma língua em cujos livros se guardam os fundamentos do saber da modernidade. O quê os Estados Unidos são hoje, deve-o à sabedoria alemã. O mesmo se dirá da Russia devido aos sábios alemães.

Na sua idade, meu caro neto, a literatura, sobretudo de ficção, tem outros atrativos. Mas, ficção fundamentada na realidade da existência social. Imagino o como não terá apreciado o CID de Corneille. Já nesse tempo em que lhe escrevo, terá lido o Horácio, que a-par do CID, constituem um dos melhores dramas que se teem representado ao parecer do célebre  La Bruyère. Não lhe esqueça desde já de familiarizar-se com as fábulas de LA FONTAINE. Falando de animais a quem emprega a fala humana, outra coisa não pretende senão corrigir os homens, como êle mesmo declara ao dedicá-las ao Delfim de França, filho de Luís XIV. Animais,

         “Troupe de qui l’histoire, encore que mensongère,

         “Contient dês vérités qui servent de leçons.

         “Tout parle en mon ouvrage, et même les poissons:

         “Ce qu’ils dissent s’adresse à tous tant que nous sommes:

         “Je me sers d’animaux pour instruire les hommes.”

Não menos instrutivo o francês em que são vazadas. Corneille, Racine, Molière e La Fontaine são os representantes máximos da literatura do século em que viveram. Na sua idade, muito antes até, sabia inúmeras fábulas de La Fontaine, e trechos inteiros do CID. Daí vem o pouco do francês que ainda me resta, passados tantos anos sem usá-lo. Molière com quem você não tardará a travar conhecimento, sempre atual, porque não se preocupa nem de ciência , nem de atividade. Sòmente dos afetos, onde a parte imutável do homem, pois neles residem os instintos. “Quand tu seras plus avancé”, havemos de continuar a conversar a esse respeito. Ou , não precisarei, porquanto aí na Suiça encontrará melhores guias que este seu pobre avô.

         Comunico-lhe que esta carta chegará à Suissa muito além da época própria para podermos combinar o como passará os cinco dias de férias de que me fala em sua carta, porquanto escrita da Suissa no dia 4 do corrente, só ontem, 16, foi-me entregue pelo correio. O atraso em nada me faz pena. Quanto mais penso no modo melhor de v. passar as férias escolares, mais me convenço, ao menos por enquanto, é aconselhável passá-las mesmo no (chalé de montanha) do colégio. Disso já teve experiência nas excursões últimas a Champéry. Ao par das novas paisagens, como a de que me fez tão bem estilizada descrição nas vizinhanças do Mont Blanc, e os divertimentos de sport que a Ecole Nouvelle saberá regrar, e, sobretudo, na convivência de pessoas que v. já conhece. Imagino só se fosse em férias a Aarau. Frau Brugger já é senhora de idade, muito distanciada da sua. Além disso ficaria seu tanto vigiado. Em pensão que outra, ficaria como no ar, ao acaso de conhecimentos de ocasião, mal-estar que se estenderia ao seu companheiro de colégio que iria junto.

         Quando se aproximar o tempo do Ano Bom, vou lhe mandar um “fric” extraordinário, para que compre uma pequena lembrança a levar em Aarau, apenas no sentido de "les petits cadeaux entretiennent l’amitié". Não podemos esquecer de como auxiliou Heloísa no acomodá-lo na Suíssa.

         Então foi um dos três escolhidos para diretores dos jogos esportivos? A satisfação maior que isso me causou foi o de sentir a estima e a confiança que em tão pouco tempo já vai adquirindo entre os seus condiscípulos. Nesse situação de proeminência tome muito cuidado de não abusar do seu feitio natural e folgazão de fazer caçoadas à custa dos defeitos dos outros. Não perca nem contrarie esse pendor natural. Retenha-o apenas em seus excessos. Na hora de comandar antes pender para a austeridade. Sobre tudo, de uma equidade completa. Como juiz sempre da maior imparcialidade. Nunca fechar os olhos para as falhas do team da sua simpatia, nem demasiado rigor para os contrários. No resto, repito, seja espontâneo e brincalhão; mas nenhuma graça deve molestar e muito menos ofender ninguém. E facilmente isto acontece quando a graça baseia-se na verdade: “Il n’y a que la verité qui blesse” já o senso comum verificou e fê-lo passar em lugar comum da linguagem usual.  No primeiro momento é motivo de risota. Os mesmos expectadores acabam por perder o respeito e, por fim, a estima do engraçado. Sentem que, mais dia menos dia, serão vítimas das “pointes” do gracejador. Como quer que sejam, que fiquem sempre entre o couro e a carne, sem nunca fazer ferida penetrante. Como a esse respeito um dia refletiu um clássico de nossa língua.

         Ao entrar o inverno, logo nos primeiros gelos e nevadas, tome lições para utilizar o par de skis que a tia Isa me disse que escolheu o melhor que lhe aconselharam. Pouco lhe custará adquirir o hábito dêsse Sport. Não discuta as lições. Siga à risca o que lhe mandarem fazer. Em tudo, esse é o melhor alvitre para aprender depressa. Quando adulto, ao voltar para o Brasil, terá ocasião, aqui mesmo na América do Sul, na Argentina e no Chile, para onde vão todos os anos os amadores de São Paulo e do Rio Grande do Sul. “Um suco”. Assim me disse no outro dia um deles, professor da Escola de Medicina daqui.

         Quanto aos livros que me pede tomei bem nota. Vou já tirar de minha biblioteca um exemplar para enviar-lhe. É em francês. Verá que mina preciosa para o enriquecimento do vocabulário. É o Diccionaire Ilustré de Duden que os seus professores aí devem conhecer bem. Todo de imagens, e ao lado das imagens, na mesma página, o como se dizer na palavra. Imagem e palavra relacionadas por numeração e letras correspondentes.

         De dicionário francês-português e português-francês, vou enviar um pequeno, mas excelente. Enquanto não encontro em melhor estado (pois a edição está esgotada), irá o exemplar que pertenceu a seu pai. Por dentro está perfeito. A encadernação é que está péssima. Mas será precioso para v. Porque leva colado um retrato de seu pae quando estudante, provavelmente colado por ele mesmo. Dêsse modo v. aviverá as saudades que deve ter dele. Foi muito seu amigo e um homem muito bom, muito inteligente. Se quando teve necessidade de interromper os estudos para auxiliar como caixeiro à sua mãe viúva, tivesse tido as facilidades de um avô que o houvesse enviado a Suissa para completar a educação, podemos imaginar que homem não teria voltado, a figurar entre os melhores de nossa terra. Contudo nele admirava o muito que sabia, tudo devido a força de vontade expressa em auto-didatismo exemplar. Falava o inglês perfeitamente, o italiano correntemente, lia o francês com desembaraço, tudo no entretempo que as suas ocupações materiais lhe permitiam. Repito: não estranhe o mau estado em que vai a encadernação do dicionário, com capa postiça que seu mesmo pai nele fez e eu apenas reforcei porque a encontrei a desfazer-se, e pus uma sobre-capa para encobrir a ruindade da que ficou por baixo. Porque este dicionário está com a edição esgotada, é outra razão porque não lhe envio um novo. O meu me acompanha desde os doze anos de idade e ainda serve. É incomparavelmente melhor do que o seu de uso no Mackenzie. Muito superior aos dois é o em francês – NOUVEAU DICTIONNNAIRE CLASSIQUE DE LA LANGUE FRANÇAISE por Bescherelle Ainé, em quatro volumes, do qual só há um resumido em um só volume, mais que suficiente para o uso. É ótimo. Não pode deixar de existir aí na biblioteca da Ecole Nouvelle. Com a vantagem ainda de ser tudo em francês e, pois, a enriquecer o seu vocabulário.

         Passando agora a outro assunto: não lhe esqueça de vigiar os dentes. Além do cuidado diário, sobretudo à noite, e bom seria logo depois das refeições principais por livrá-los da carne, cuja decomposição facilita a cárie: leve-os ao dentista cada seis meses. Já agora é tempo dessa providência. Levou-os daqui bem tratados pelo Dr. Bittencourt. Um dos incisivos laterais do seu lado esquerdo, quando o levei a tratar já estava tão cariado que por pouco o Dr. Bittencourt não tocou o nervo, que cheguei a ver por transparência da fina parede óssea livre da cárie. Foi obliterada a cavidade com porcelana, que não tem grande  resistência. Entre a porcelana e o nervo quase exposto o hábil dentista depositou uma camada de cimento protetora e mais resistente que a porcelana. Espero que ainda esse dente esteja em bom estado. Mas, olho nele, que feio não apareceria no pretório um advogado com falha no frontispício da dentadura. Uma bela dentadura não é o menos na apresentação da personalidade. Na mulher então nem falemos: talvez o mais belo adorno dos seus encantos. Por isso já o Dr. Bittencourt tratou, a ouro, os primeiros quatro molares definitivos da Dúnia. Tal v. já tem os seus dois seguintes bem restaurados, que nascem aos onze anos e também aos seis anos de idade. Já sua mãe está avisada para mandar fazer o mesmo quando chegar o tempo à linda loirinha, para quem já arranjei um internamento em um dos melhores colégios de meninas em São Paulo. Creio que já dei notícia a v. a esse respeito. Mas, com muito prazer o renovo.

         Esta já vai longa. Na próxima reservo-me o tema para conversarmos acerca do que vem a ser “estudos de humanidades”, assunto de muito fácil compreensão e, também, de levar a bom termo, desde que o saibamos, de nos livrar da impropriedade do saber-de-cor.

         Basta, mas habitue-se a escrever uma vez por mês. Continue com a franqueza e sinceridade que tanto lhe aprecio. É uma maneira de “não mentir”. De mim, com a mesma de avô, continuarei a tomar a liberdade de aparar excessos. A mocidade, de seu natural inexperiente, pende a querer obter tudo mais depressa do que é preferível. Com dezoito anos cumpridos (complidos, dizem os espanhóis, e bem) cada vez melhor compreenderá a experiência do avô, na recomendação dos quatro itens, que, uma vez a eles desde moço o homem habituado, servem para regrar o procedimento da vida inteira. Todos os meses, também eu escreverei ao querido ausente.

Um beijo da avó e outro do avô

João Marinho

 

NOTA DE JOÃO CARLOS MARINHO: Os quatro itens a que se refere a carta foram muito importantes (e ainda são) na minha vida. Quando fiz dez anos o meu querido avô escreveu em uma cartolina e pregou na minha parede:

NÃO MENTIR

NÃO FALAR DE SI

NÃO DELATAR

OBEDECER

TOPO