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PASSO A PASSO COMO EU ESCREVI  O SANGUE FRESCO

João Carlos Marinho

Sangue Fresco é um livro que fala de bandidos que tiram sangue de crianças para vender no exterior.

O Ship O’Connors é o chefe da quadrilha, ela manda raptar crianças de menos de onze anos e as leva para um campo de concentração na floresta amazônica onde o sangue é retirado das crianças e devidamente engarrafado.

O Ship O’Connors escolheu como vítimas as crianças dos colégios chiques de São Paulo porque São Paulo é a cidade mais rica do Brasil e os alunos das boas escolas , as escolas mais caras, são muito bem alimentados, tem muita vitamina no sangue, o que dá a garantia de um bom produto para ser vendido no exterior.

Depois que as crianças são seqüestradas e são levadas de avião para o campo de concentração na Amazônia, elas são divididas conforme a classificação do sangue de cada um.

Os tipos de sangue, que variam conforme a pessoa são:

A positivo
A negativo
B positivo
B negativo
AB positivo
AB negativo
O positivo
O negativo

Os bandidos punham um agulha na veia da criança , o sangue corria através de um tubinho e ia cair dentro de um frasco. O frasco era colocado na geladeira e depois era mandado para o exterior de avião.

Esse acontecimento de transfusão de sangue ficou muito familiar para mim no fim da minha infância, quando eu tinha doze para treze anos e ainda usava calça curta. A gente só passava da calça curta para a calça comprida quando o corpo deixava de ser infantil. Então, quando eu tinha de doze para treze anos, o meu querido pai ficou doente de uma espécie de leucemia: a medula que se localiza dentro do fêmur, aquele osso da coxa, não produzia mais glóbulos vermelhos. Vocês sabem que os glóbulos vermelhos é que transportam o oxigênio para todas as partes do corpo. Quando o sangue passa no pulmão os glóbulos vermelhos fixam o oxigênio que nós respiramos e, com as bombadas do coração, esse oxigênio, transportado pelos glóbulos vermelhos, vão irrigar o corpo inteiro. Como o corpo do meu pai não produzia mais glóbulos vermelhos, ele precisava de repetidas transfusões de sangue. E eu era o acompanhante do meu pai nas transfusões porque a minha mãe ficava muito impressionada de ver aquela vasilha de sangue que ficava suspensa e através de um tubinho ia liberando aos poucos o sangue que entrava na veia do meu pai. O sangue do meu pai era tipo A positivo, igual o meu, mas o sangue do gordo, como está no livro, é O negativo, chamado também de doador universal. 

Para as transfusões de sangue o meu pai vinha de Santos e ficava na casa do meu avô, na rua Vitorino Carmilo , nos Campos Elisios. A gente pegava o bonde Barra Funda na Alameda Eduardo Prado que nos deixava na Praça da Republica. O consultório do doutor José de Paula e Silva ficava na Avenida Ipiranga, entre a Praça da República e a Consolação. Eu e papai andávamos da Praça da Republica até o consultório, o meu pai já sem oxigênio, vinha se arrastando, muito ofegante, se apoiando em mim. A transfusão demorava mais de meia hora, eu ficava olhando para aquele frasco lá em cima, cheio de sangue todo vermelho, que ia se esvaziando aos poucos e passando para o corpo do meu pai. Eu fazia muitas perguntas para a enfermeira: ela me dava boas explicações sobre o mundo das transfusões de sangue. Era notável a diferença da postura do meu pai depois da transfusão, ele descia a Avenida Ipiranga ao meu lado,com passo firme, de bom humor, com uma boa “verve”, ia me explicando a arquitetura dos prédios novos que surgiam.

Esses capítulos das transfusões do meu pai ficaram muito gravados na minha sensibilidade de criança, e não tenho dúvida de que direta ou indiretamente me deram o empurrão para escrever uma aventura com muito sangue no meio, com muita transfusão.

Uma particularidade do Sangue Fresco é que é o único livro meu que segue um calendário muito preciso, detalhadamente preciso. 

O capitulo 5 começa assim:

Estamos em 29 de junho de 1980, um domingo, e havia noite de São Pedro na casa do pai do gordo.

O capitulo 8 começa assim:

No dia primeiro de julho a comitiva partiu ( falando do começo das férias e da viagem da turma do gordo para a Praia das Cigarras).

O capitulo 9 começa assim;

No dia 13 de julho o pai do gordo madrugou ( falando do concurso de pesca que o pai do gordo ia participar na lancha dele )

O capitulo 11 começa assim:

As aulas recomeçaram no dia quatro de agosto.

E assim por diante, ia ser cansativo eu ficar desenrolando todas as datas que tem no livro. Mas esse sistema cronológico vai dar ao leitor de uma parte uma noção exata da época em que se passa a aventura e de outra parte do tempo que demoram os episódios do livro. O Guerra e Paz do Tolstoi é assim. A gente sabe em que mês está, em que ano está e muitas vezes o dia em que a gente está. 

Aquela festa de São Pedro de 29 de junho de 1980, foi quase inteirinha tirada da real festa junina que eu dei em 29 de junho de 1980 nos jardins da minha casa de Guarulhos, na Avenida Salgado Filho. Vocês vão dizer:mas festa de São Pedro, São Antonio e São João a gente festeja na véspera. Está certo, vocês têm razão, é exato, mas acontece que essa aí, não me lembro por que, eu festejei no próprio dia.

E foi a última grande festa junina que eu dei na vida. Enquanto eu morei numa casa com jardim , eu nunca faltei de comemorar São Pedro. Mas de costume eu comemorava com pouca gente, umas quinze ou vinte pessoas no máximo, da família, contando as crianças. Fogueira e balão nunca faltou, isso era sagrado, eu aprendi com o meu pai. Papai adorava festa junina, eu o esperava no portão, em Santos, quando ele apontava lá no começo da rua, cheio de pacotes embaixo do braço: os rojões, os busca-pés, as bombinhas, os vulcões, as estrelinhas, as rodinhas, as tremendas cabeças de negro que custavam três cruzeiros, e os balões e as fogueiras isso a gente fabricava em casa mesmo. E os traques, que eu jogava no chão da cozinha para a cozinheira pisar em cima e dar gritinhos.Igualzinho o mordomo Abreu fez na festa que está no livro, como consta da pg. 19:

“ o mordomo atirava traques nos pés da copeira:ela pulava e gritava.”

A festa de São Pedro de 1980 foi uma festa linda, com espaço de dança, e foi até alta madrugada. De escritores bem conhecidos, tinha a Ruth Rocha e a Tatiana Belinky e tinha também o Julio Gouvea , marido da Tatiana, que nos anos 50, junto com a Tatiana, foi o pioneiro de levar o Sitio do Pica Pau Amarelo ao vivo na televisão. O Julio dançou um samba paradinho com a Tatiana absolutamente inesquecível, a festa toda parou para ver. Dos meus filhos o Beto já tinha 15 anos, a Cecilia 13 e o Alex 10. O Alex, mesmo com dez anos, foi o rei dos balões, soltou os seis que ele fez, dos grandes, dos caprichados, e nenhum pegou fogo, todos subiram.

Logo depois da Festa Junina a turma do gordo desce para o Litoral Norte, enfrentam a estrada congestionada de férias, que eu conhecia bem e vão exatamente para a minha casa na Praia das Cigarras. O gordo joga tênis no Iate Clube, onde eu jogava também, tinha dias que eu e meus filhos jogávamos tênis o dia inteiro, de manhã até de noite, só parando pra comer. O gordo convida a Berenice para um passeio no Catamaran dele, que chamava Berê. O Catamaran real meu chamava Ciça, também uma contração do nome da minha filha Cecilia.

Há uma tentativa de seqüestro, em pleno mar, que falha, mas o Pirata leva tiros e morre, sendo enterrado no jardim da casa das Cigarras. Esse detalhe é importante porque o Pirata será substituído pelo Pancho nos livros posteriores, e o Pancho vai continuar até o último livro da coleção.

Quando terminam as férias a turma volta para São Paulo e é quando o Ship O’Oconnors faz o monumental seqüestro coletivo, exatamente no dia 12 de agosto atingindo escolas de nomes familiares: Rio Branco, Bandeirantes, Pueri Domus, Morumbi, Dante Aleghieri, Vera Cruz , Santa Cruz, Ofélia Fonseca, Rainha da Paz , Porto Seguro, Santo Américo, Sion , Assunção e Lourenço Castanho. Como no Gênio do Crime a cidade de São Paulo e suas coisas são um assunto que eu gosto, no que eu sigo o velho ditado literário: “ Se queres ser universal canta a tua aldeia.”

A turma do gordo é transferida para o campo de concentração na Amazônia e dão adeus a São Paulo: na sequência do livro o lugar da ação vai passar até o fim inteiramente para a Amazônia.

Esse campo de concentração no meio da floresta eu estive nele. Foi em janeiro de 1973 que, partindo de Belém , eu visitei uma fazenda experimental de gado de um parente meu. Fazia-se uma grande clareira no meio da floresta , plantava-se capim e punha-se o gado pastando. A primeira coisa que chamava a atenção quando a gente andava naquela clareira era a natureza do chão. Quando você tira árvore de uma floresta você espera encontrar terra e ali não, parecia que eu estava na praia, o chão era de areia branca, areia fina. Isso mostrava a nenhuma fertilidade do solo amazônico, e porque as raízes das arvores não penetram no solo, elas se espalham de lado e se alimentam das folhas que caem. Arvores com precária sustentação, caem com facilidade, umas empurrando as outras, causando o “boliche amazônico” com que as crianças mataram os cossacos que as perseguiam. Aquela descrição que eu faço da floresta que rodeia o acampamento, grande, escura, misteriosa, de onde vem o alarido poético e distante dos cantos das aves e dos guinchos dos macacos, isso é uma descrição daquilo que eu vi naquela fazenda de gado incrustada na floresta.

E a sucuri eu conheci também. Tenho até hoje uma fotografia com uma sucuri pendurada no meu pescoço. A sucuri é um astro, é uma estrela maior, ela tem um desempenho de milhões de dólares nesse livro. Qualquer pessoa que fala no Sangue Fresco lembra primeiro é da sucuri, apaixonada pelo gordo, cobra que viu o gordo nunca mais vai querer saber de comer outra coisa. A sucuri é extremamente feminina, tem uma paixão obsessiva, alucinante e devoradora.

Então eu vou escrevendo o meu livro e chegou uma hora que o assunto do acampamento esgotou, a história precisava continuar e o único jeito de continuar era eles fugirem do acampamento e serem perseguidos. Se a policia descobrisse e entrasse lá para salvar as crianças a história ia ficar pela metade, não adiantava nem publicar. Era necessário um desenvolvimento dramático convincente.

Um pouco como no caso do gordo, achar a idéia de seguir pelo avesso, eu fiquei algum tempo parado ali, pensando nas alternativas que eu tinha. Percebi imediatamente que a solução correta seria das crianças fugirem pela floresta sem bússola e sem mapa. Mas isso implicava num conhecimento íntimo da floresta que eu não tinha e que os livros não podiam me dar. Eu precisava de um conhecimento muito pessoal da floresta igual o que eu tenho desde criança das ruas e das coisas de São Paulo. Eu conhecia Manaus, conhecia Belém, tinha andado de lancha nos igarapés, tinha um razoável conhecimento livresco das particularidades da floresta Amazônica e do rio Amazonas mas não bastava para que o leitor sentisse com realidade as crianças andando lá dentro.

E como não estava ao meu alcance esse conhecimento íntimo da floresta eu procurei uma outra solução: as crianças eram trazidas de São Paulo dentro de aviões Boeing. Um desses aviões iria passar a noite no acampamento. O gordo e seus amigos entrariam astuciosamente no Boeing e o levariam de volta até São Paulo. O conflito dramático e emocionante seria dado pelo fato de ninguém deles saber guiar avião. Como é que uma criança que não sabe guiar avião vai poder guiar um Boeing? A minha amiga Vera Xavier conhecia um piloto da Varig de larga experiência internacional com Boeings. Eu fui na casa dele e passei horas anotando as informações dele num caderno. Ele foi me contando que os aviões Boeing, já naquela época, tinham alguns controles automáticos de subida, descida e vôo de cruzeiro,com rotas de navegação estabelecidas automaticamente, que permitiriam (com a indispensável ajuda da imaginação do escritor) fazer o gordo levantar vôo e trazer o Boeing para São Paulo. Em 1980 a Internet estava prestes a chegar e os sistemas eletrônicos da aviação já estavam muito avançados. É bom lembrar que o homem chegara “automaticamente” na Lua onze anos antes e o céu estava recheado de centenas de satélites artificiais.Não vou dar aqui os detalhes, mas eu consegui dados suficientes para uma viagem muito emocionante e recheada de perigos e sustos e com final feliz. Ficaria uma história convincente e verossímel.

Passei uma semana muito entusiasmado mas à medida que os dias passavam o meu entusiasmo ia diminuindo. A voz do escritor dentro de mim dizia: meu amigo, você leva os sujeitos até uma clareira na Amazônia e eles voltam de avião! Cadê a floresta nessa história? Você está fugindo da floresta seu João Carlos Marinho. Não seja medroso, você tem que entrar nessa floresta, entrar até o pescoço nessa floresta.

Abandonei a solução do avião. Os dias foram passando e eu comecei a espalhar para todo mundo que eu precisava de uma pessoa que tivesse absoluta intimidade com a floresta amazônica. Uma pessoa que andasse de noite nessa floresta, sem bússola, sem mapa, igual eu ando no quintal da minha casa.

E o meu cunhado, Carlos Alberto Sardemberg, que é um excelente jornalista, me deu a solução. Ele falou assim: “ João Carlos, eu conheço um professor de cursinho que estava preso e foi solto pela lei da Anistia, que tinha sido o mateiro da guerrilha do Araguaia. Ele era o guia da guerrilha, era o correio da guerrilha, e para fugir da perseguição do exercito ele guiava aquela turma de noite pela floresta Amazônica.” A minha cara de satisfação não tem palavras para ser descrita. O Carlos Alberto acabava de me descrever exatamente o tipo da pessoa que os meus sonhos procuravam. Esse jovem desconhecido chamava-se José Genoino.

Marcamos um encontro no bar Paddock, na rua São Luis, que naquele tempo ainda era um dos bares mais elegantes de São Paulo, esses bares deliciosos com um piano suave ao cair da tarde. Eu fui junto com a Marisa, minha mulher e durante três horas e meia eu fiquei bombardeando o José Genoino de perguntas e a Marisa com um caderno, anotando tudo.

Eu partia de um esquema que tinha duas perguntas básicas:

1) Uma turminha de dez anos foge do acampamento 
dos bandidos de noite: eles precisam achar o Rio 
Amazonas ou um rio grande para fazerem uma jangada e seguir a correnteza. Que que eles devem 
fazer ?
2) Como é viver na floresta sem mantimentos? Quais os
perigos, quais as soluções.

E por aí a coisa foi desenvolvendo. O Genoino deixou claro que eles precisavam primeiro achar um igarapé. E falou que eles iam caminhar sempre sobre uma grande e macia camada de folhas, eles não iam caminhar sobre o chão. Então eu perguntei:
- Genoino, antes do igarapé ser um igarapé, o que que   ele é?
- São fios de água – disse ele.
- Que correm embaixo das folhas – eu disse.
- Certamente – ele falou.
- Então a trilha do fio de água poderá ser percebida de cima porque haverá um pequeno afundamento no chão de folhas exatamente em cima fio d’água que corre lá embaixo – eu falei.
- Certamente - disse o Genoino.
Nesse ponto eu levantei os braços como quem comemora um gol. A chave do mistério estava na minha mão, o livro estava resolvido.

E conversamos muito mais, foram três horas e meia de uma conversa agradabilíssima e eu sou imensamente grato ao José Genoino pela tranqüilidade, pelo bom humor e pela infinita paciência que ele mostrou comigo, sem me conhecer.Eu sai de lá convencido de que tinha encontrado uma pessoa incomum, um gentleman. Sem ele eu não teria terminado o Sangue Fresco do jeito que ficou. E terminei, o livro foi publicado, um livro que deu muito trabalho mas acho que valeu.

João Carlos Marinho

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